Dezenas de mulheres denunciaram, nos últimos dias, ter sofrido assédio sexual e abuso psicológico por homens do cenário brasileiro de esports. O movimento de exposição (“exposed”) teve início no Twitter na última terça-feira (5), quando a tatuadora Daniela Li publicou um tuíte contando a situação que vivenciou em um encontro com o ex-técnico de League of Legends (LoL), Gabriel “MiT" Souza, cerca de sete anos atrás. Após sua publicação, dezenas de outros jovens (meninas e meninos) relataram ter passado por situações semelhantes e o assunto ganhou destaque internacional.
Entenda, a seguir, as denúncias de assédio feitas até agora. O TechTudo também conversou sobre o caso com especialistas para entender por que um relato incentiva outros. A onda de denúncias não é inédita no mundo e tem remetido bastante ao MeToo estadunidense, movimento que há anos traz à tona diversos abusos ocorridos em todo o mercado de entretenimento.
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Entenda a onda de denúncias
A primeira denúncia foi feita na madrugada da última terça-feira (5) por Daniela Li. No Twitter, a moça deu detalhes sobre uma situação abusiva que passou com Gabriel "MiT" Souza. O caso ganhou destaque, e o próprio jogador admitiu o que fez e se retratou publicamente. A desenvolvedora Riot Games também informou que MiT não faria parte do corpo de casters dos torneios de LoL em 2021, mas não quis especificar se o afastamento tinha relação com a denúncia.
Horas depois, diversos relatos de outros abusos começaram a surgir na Internet. Personalidades do cenário gamer brasileiro como Filipe “pancc”, do Counter Strike: Global Offensive (CS:GO), Thiago “tinowns” (LoL), Guilherme “Kake” (LoL), Lincoln “Fnx” (CS:GO) e Rafael “mav” Loureiro (Rainbow Six: Siege) são alguns dos nomes citados nas acusações.
Pancc, da equipe da yng Shark Esports, foi acusado de assediar e perseguir online diversas garotas, enquanto Kake (Flamengo Esports), de exigir nudes dos rapazes que treinava em troca de aulas e participação em projetos ligados ao jogo da Riot. As acusações aos dois envolvem menores de idade, com meninas e meninos de 15 a 17 anos expondo situações de assédio. Tanto Kake quanto pancc têm 22 anos.
Thiago “tinowns”, da paiN Gaming, e Rafael “mav”, da Team Liquid, foram acusados por ex-namoradas de atitudes abusivas tomadas durante seus relacionamentos, com denúncias que variam de terrorismo psicológico a agressões físicas. Já Lincoln “Fnx”, da Imperial Esports, foi denunciado por compartilhar, sem consentimento da vítima, um vídeo de conteúdo sexual, prática que configura crime segundo o artigo 218-C do Código Penal brasileiro (incluído pela Lei nº 13.718, de 2018).
Depois da onda de denúncias, o TechTudo entrou em contato com a produtora do LoL, que mandou o seguinte pronunciamento. "A Riot Games repudia todos os atos de assédio, racismo, preconceito e manifestações de ódio dentro ou fora de seus jogos e da comunidade. Tais comportamentos vão contra os valores da empresa. Sobre as denúncias ocorridas a partir de 5 de janeiro pelo Twitter, o estúdio informa que está ciente da situação e já manteve contato com as organizações do CBLOL para acompanhar suas decisões".
Já a Ubisoft, responsável pelo Rainbow Six: Siege, não respondeu até o fechamento da matéria. Não foi possível contatar a Valve, que cuida do CS:GO. O TechTudo também entrou em contato com os acusados citados, mas não teve resposta. Não foi possível contatar Kake.
Além de MiT, até agora somente Kake, panc
Os casos são isolados?
Essas não são as primeiras denúncias de assédio sexual sofridas por mulheres no universo gamer. Em julho do ano passado, por exemplo, nos Estados Unidos, mais de 70 denúncias de assédio sexual e abuso psicológico foram publicadas, também no Twitter, por diversas pessoas envolvidas com o mercado. As acusações incluíam nomes de peso, como Joey Cuellar, então presidente da Evolution Championship Series (EVO), e streamers famosos, como Lono “SayNoToRange”.
De acordo com um estudo de 2019 da ONG Anti-Defamation League, as mulheres são maioria entre os jogadores brasileiros (53,8% dos gamers do país são mulheres, segundo a Pesquisa Game Brasil 2020). A pesquisa também aponta que pelo menos 38% deste público sofrem assédio frequentemente durante as jogatinas. League of Legends e CS:GO, vale dizer, jogados pela maioria dos acusados desses últimos dias, estão entre os games mais citados nos relatos de assédio ouvidos pela pesquisa.
Em conversa com o TechTudo, a jornalista e ex-editora da IGN Brasil Bárbara Gutierrez destacou as dificuldades diárias vividas por mulheres no meio gamer. “A verdade é que esse mercado em que a gente vive é muito violento, muito agressivo para a mulher. Você chega para jogar uma partida e já é xingada por conta do seu gênero. Não é porque você fez alguma coisa errada ou certa. Você vai a um evento, vê um monte de homem ao seu redor e, se você não for assediada, você é uma exceção”, contou.
Para a cientista política Isabel Santos, é importante entender que as violências sofridas pelas mulheres, seja no ambiente gamer ou fora dele, fazem parte de um problema estrutural que precisa ser desconstruído. “A principal análise desse movimento é entendermos que não são casos isolados. Os homens abusam as mulheres desde as relações de trabalho às relações mais íntimas, porque acreditam que podem. Existe um sistema patriarcal que os faz acreditar que não serão punidos por seus atos. Todas nós conhecemos uma mulher que foi abusada, desde a forma mais 'sutil', se é que podemos dizer assim, até as mais graves, mas ninguém conhece um homem que foi abusivo. Essa conta não fecha”, comentou.
A importância das denúncias e como mudar o jogo
As denúncias são importantes, de acordo com Isabel, porque despertam no público feminino uma consciência sobre as situações vivenciadas. Uma primeira denúncia acaba encorajando outras vítimas a falarem. “A exposição dos casos provoca uma reação coletiva em outras mulheres que também passaram por esse tipo de situação, e faz ecoar uma voz coletiva. Muitas mulheres entendem que sofreram abusos ao ver uma denúncia. Por isso, a importância dos movimentos como o MeToo, nos Estados Unidos, e, a nível de América Latina, podemos citar as mulheres chilenas, que lançaram, em 2019, a apresentação de 'La Tesis' (…), [em que] dizem que 'o abusador é você e o Estado'.”
De acordo com a cientista política, há mulheres que deixam de denunciar abusos justamente por medo do silenciamento e descrédito. A pesquisadora destaca que é necessário que a justiça brasileira seja mais receptiva às denúncias femininas, muitas vezes descreditadas por juristas (como aconteceu como Mariana Ferrer, em 2020). “O aparato jurídico precisa estar mais preparado. Ainda que tenhamos avanços importantes no Brasil, o judiciário brasileiro precisa ser mais acolhedor e garantir segurança à essa mulher”, explicou.
“Os homens também precisam se responsabilizar nesse processo. Falar, ler, estudar sobre toda forma de pequenas e grandes violências intrínsecas às suas relações com mulheres, em todos os espaços. E precisam desconstruir a certeza da impunidade, já que as mulheres estão cada vez menos dispostas a ficar caladas”, diz Isabel. Por último, as duas entrevistadas defendem que as empresas de jogos e de eventos de esports devam, de alguma maneira, se responsabilizar pela punição dos jogadores. “O que é importante pra gente são ações. O que vai ser feito daqui em diante? O que que vai mudar? Porque do jeito que tá, não dá”, finalizou Bárbara.
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